Quinta-feira, 23 de Dezembro de 2010

O Lago

 

Nesse Inverno o lago trouxe fome à povoação, e a família de Lucas, que era abastada e possuía seis barcas e as competentes redes novas, teve necessidade de recorrer ao ofício de olaria que todos tinham aprendido. Lucas era um homem magro e linfático que se dizia conhecer remédios para as febres. O país era acolhedor e fértil, mas havia regiões malsãs, sobretudo no começo da estação das chuvas. Lucas aconselhava deixar-se picar por nove abelhas e ungir os olhos com cera para que a febre do lago abandonasse aqueles a quem apoquentava. Ele era um pouco adivinho e curandeiro; sabia lendas velhíssimas do deus das Tormentas e do Dragão Ruyancas, e costumavam pedir-lhe presságios quando nascia uma criança.

Quando nevou pela segunda vez sobre os olivais, Maria deu à luz um menino que enfaixou com uma cinta de linho, mostrando-o depois aos pastores do seu amo Lázaro. Eles beberam nos canjirões de barro pela prosperidade da criança, e, embora Maria fosse pobre e órfã há muito tempo, um deslumbramento semelhante a uma paixão apoderou-se do seu espírito. Lucas tinha passado à sua porta dois dias antes do parto e dissera-lhe: Hanahana, mãe de deus, todos esperamos a piedade de ti. Ela corara de confusão e espanto. E vira-o afastar-se, leve e cintilante, em direcção ao lago. O sol dourava a cabeça de Lucas com um grande nimbo avermelhado. Era um sol sangrento e imenso, como ela jamais vira; o lago parecia sustentá-lo sobre as suas águas, e os pobres pardais, transidos de frio nas figueiras, deixaram ouvir um chilreio primaveril. Maria recolheu-se e orou: Ó Deus, laço que me ata à ribeira, faz com que o meu fardo não seja uma afronta para o homem. Embora a sua vida fosse pacífica e sem miséria, ela sentia-se às vezes inclinada a melancólicos pressentimentos. Era uma jovem robusta, de tez fina e olhos azulados que tomavam todos os cambiantes do lago. Estimavam-na pela sua índole modesta e piedosa, Lázaro o rico mandara que aprendesse a tecer com um mestre de Bactriana; e casara-a com José, o mais fiel dos seus operários. Na noite em que nasceu o menino, falou nele aos seus hóspedes e alegrou-se porque eles ofereceram presentes à criança. Com os seus mantos de lã bordados, os senhores dignaram-se entrar na morada de Maria e saudaram-na afavelmente. Eram homens velhos a quem tinham morrido filhos e que sabiam meditar sobre a fortuna sem deixar de pesar as culpas do próprio coração. Sorriam perante o quadro da jovem serva que tinha nos braços o seu primogénito, e sentiram-se comovidos. Deixaram ouro e alguns perfumes ao pé do berço pobre.

Quando pôde levantar-se, Maria levou a criança à beira do lago e esperou que Lucas viesse buscar barro para o seu trabalho de oleiro. Então mostrou-lhe o menino; mas não se atreveu a falar. Lucas prostrou-se na margem do lago, e parecia que juntava pequenas conchas com as mãos, como algumas vezes costumava fazer. Ma não. As lágrimas caíam-lhe pelo rosto, como as que chora uma videira cortada.

- Ele veio para que olhos claros se não escureçam nem os ouvidos abertos se fechem – disse, entre soluços. Maria assustou-se de repente, e fugiu com a criança apertada ao peito. A sua humilde vida de serva era agora penetrada de estranhas apreensões. Pediu a José para partirem; havia ali muitas desgraças, muitos lares estavam de luto, os pescadores deitavam-se sem cear nos seus tugúrios de canas.

- Sonhei que o menino morria, que os soldados traziam ordens de o levar. – E os seus olhos tomavam a cor funesta do lago agitado. Não comia, debruçava-se no tear como trespassada por uma dor lancinante. Sentia as mãos dormentes e afligia-a uma atroz dor na nuca. José consolava-a, uma esposa tão jovem parecia-lhe às vezes ingrata água à sua guarda. Um dia Lázaro, o amo, mandou que ele partisse, e levasse Maria e o menino. O semblante dele era severo, bem diferente daquela noite do nascimento, quando os hóspedes e os pastores tinham entoado cânticos e bebido vinho puro.

- Vai para as terras de Ham e espera que eu te chame – ordenou. E José disse:

- É grandioso o socorrer como os cedros do Líbano.

Assim deixaram as proximidades do lago e moraram longe dele durante vários anos. Lázaro morreu. Deixou dois livros de provérbios, mas a vergonha instalou-se na sua casa, pois constava que um parente se fizera recebedor de impostos. Quando Maria voltou a ver o lago, ele estava salpicado de barcas e brilhava ao sol de Março. Lucas recolhia as redes cheias de peixe, os tempos de fome pareciam ter passado. Reuniam-se os pescadores e censuravam a sinagoga e os ricos; mas logo sorriam sob a brisa dos hortos, olhando com ternura as donzelas que peneiravam nos pátios a farinha. Tudo era promissor e suave, grandes laranjais tinham crescido e estavam agora cobertos de flor. Maria viu o tear partido, a lançadeira tinha desaparecido; mas de resto tudo estava igual. Ela abriu as talhas da água e maravilhou-se de as encontrar vedadas e intactas. Lucas foi quem as fez no ano em que o lago foi escasso – disse ela. Pousou a mão na cabeça do menino: - Não saias daqui…

E o menino obedecia-lhe. Todos os dias enchia de água fresca as velhas talhas de barro. Ele florescia em alegria e parecia um menino semelhante a todos os outros; porém o fogo dos seus olhos não estava na natureza do lago, no clamor da guerra, nem na beleza do ouro ou do jade.

 

 

Agustina Bessa-Luís, Tríptico,

(in Natal (Editora Arcádia – 1978)


publicado por adormirnaforma às 18:37
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