Ouço dizer que a máquina humana tem milhares de anos. Terá. Pois desmontá-la, convertê-la noutra, é tarefa perigosa. Aquilino Ribeiro,Quando os Lobos Uivam |
Foto: Alina Maria Sousa
Esta antiga aldeia da margem esquerda do Guadiana foi sacrificada em nome do progresso. O enchimento da barragem do Alqueva obrigou à deslocação da população para uma nova aldeia, construída de raiz num ponto situado a uma cota superior.
Foto: Alina Maria Sousa
Vem esta lembrança da antiga Aldeia da Luz de uma reportagem que vi ontem na televisão.
Pelos vistos, os moradores não se sentem felizes, na nova aldeia. Dizem que perderam o espírito de vizinhança, se tornaram mais individualistas, perderam-se as manifestações culturais e as actividades recreativas, isto é... não se "sentem em casa". Por outro lado, muitos deles já se foram embora e parece inevitável uma futura desertificação.
Poderemos chamar progresso a actos que, parecendo justificáveis, cortam as raízes às pessoas, causando-lhe infelicidade e um sentimento de perda difícil de ultrapassar?
Não foi possível encontrar alternativas ou optou-se pelo mais fácil?
10 de Novembro de 1961
Hermínio da Palma Inácio, acompanhado de membros da
Oposição Democrática, desvia um avião da linha
Casablanca-Lisboa e lança, sobre Lisboa, panfletos que
apelam à resistência à ditadura salazarista
[...]
A vida de Hermínio da Palma Inácio, o "Velho" para os que o tratavam pelo seu nome de guerra, merecia certamente um filme, como sugeriu um seu companheiro de luta, Amândio Silva, na homenagem ao "último Herói Romântico de Portugal", numa iniciativa conjunta da Câmara Municipal de Lisboa e do Museu República e Resistência.
"Figura lendária da luta pela liberdade", nas palavras de Manuel Alegre, Palma Inácio desafiou a PIDE durante três décadas, levando-a mesmo a cair nas suas próprias armadilhas, para desespero dos inspectores da ex-polícia política.
[...] Palma Inácio iniciou a luta antifascista com a sua adesão ao "Golpe dos Militares", em 10 de Abril de 1947, um movimento desencadeado pelo general Godinho e pelo almirante Cabeçadas e que contou com a participação de alguns civis, entre os quais João Soares, pai de Mário Soares.
Ao jovem revolucionário, então com 25 anos, coube a tarefa de sabotar os aviões da base aérea da Granja, Sintra, onde havia prestado serviço militar e cruzado os céus de Portugal, - ironia do destino – muitas vezes na companhia do oficial da Força Aérea Humberto Delgado.
Esta acção acabou por lhe valer sete meses de clandestinidade, numa quinta em Odivelas, seguindo-se a sua detenção pela PIDE, conhecendo assim, pela primeira vez, as celas do Aljube. À espera do julgamento, Palma Inácio foi preparando a fuga. Na manhã de 16 de Maio de 1948, com quatro lençóis enrolados nas pernas, debaixo das calças, juntou-se aos outros reclusos, na fila para a casa de banho. Um breve momento de ausência do guarda permitiu-lhe lançar-se pela janela, numa altura de cerca de 15 metros do chão, caindo junto à sentinela da prisão, no exterior do edifício, que não teve tempo de reagir. Palma Inácio pôs-se em fuga, desaparecendo no meio da multidão. Com a PIDE de novo à sua procura, seguiu para Marrocos, de onde, após várias peripécias pelos mares, consegue chegar aos Estados Unidos. O "brevet" de piloto garantiu-lhe a sobrevivência, mas as autoridades acabam por o localizar, obrigando-o a abandonar o país. O destino foi o Rio de Janeiro, juntando-se assim a outros antifascistas que do exterior procuravam meios para acabar com o regime de Salazar em Portugal. Estava-se em 1956 e Palma Inácio contava 34 anos. Dois anos depois, a luta antifascista agitou-se com a candidatura do General Sem Medo às eleições presidenciais e o exílio deste no Brasil, a que pouco depois se junta também o capitão Henrique Galvão.
Palma Inácio, acompanhado de Camilo Mortágua, Amândio Silva, Maria Helena Vidal, João Martins e Francisco Vasconcelos, preparou então uma operação que haveria de acordar Lisboa de espanto - na manhã de 10 de Novembro, um avião da TAP, que partira de Casablanca, é desviado para sobrevoar Lisboa, onde são lançados cerca de 100 mil panfletos antifascistas. Os caças da Força Aérea não conseguem interceptar o avião, que regressa a Casablanca, para desespero do Regime.
De regresso ao Brasil, o grupo confrontou-se com a necessidade de procurar financiamento para as suas operações. Começou assim a preparação do mais espectacular golpe contra a Ditadura, o assalto à dependência do Banco de Portugal na Figueira da Foz, concretizada em Maio de 1967 com Camilo Mortágua, António Barracosa, e Luís Benvindo. Foi a operação que mais feriu o regime de Salazar, não apenas pela operação em si, mas porque todos os pedidos de extradição solicitados pelas autoridades portuguesas às suas congéneres estrangeiras foram recusados, uma vez que os respectivos órgãos judiciais compreenderam que se tratara de uma operação de carácter político - uma realidade com que ainda hoje alguns (poucos) portugueses não se conformam.
Nesta altura, o movimento antifascista estava localizado em Paris, onde acaba por nascer a LUAR - Liga de Unidade e Acção Revolucionária, que reivindicou o assalto para como operação manifestamente política.
Na capital francesa, Palma Inácio planeou outro golpe, talvez mais arrojado que o anterior, mas que acabaria por fracassar: tomar a cidade da Covilhã. Desta vez, é detido pela PIDE, que acabará por sofrer uma das suas maiores humilhações. Palma Inácio concebeu a célebre fuga da prisão do Porto, serrando as grades da cela com lâminas que a sua irmã lhe fizera chegar, com a ajuda do informador da PIDE, de alcunha o "Canário", e o conhecimento dos inspectores Barbieri Cardoso e Sachetti, que se havia introduzido na LUAR. Ambos os inspectores sabiam da existência das lâminas mas nunca as conseguiram localizar, apesar das inúmeras revistas à cela.
Em Novembro de 1973, é de novo detido pela PIDE, depois de ter entrado clandestinamente em Portugal para mais uma operação. Toda a raiva da polícia política contra Palma Inácio desabou sobre ele na primeira noite, em que foi barbaramente espancado.
Cinco meses depois, na sua cela, recebeu, em código morse feito pela buzina de um carro, nas imediações de Caxias, a primeira notícia de que um golpe militar está em curso. A Revolução estava na rua. No dia seguinte, a 26 de Abril, chegou a ordem de libertação dos presos políticos. Contudo, Palma Inácio foi o último a sair, pois alguns militares, que recusavam ver o assalto à Figueira da Foz como uma operação política, resistiram à sua libertação.
Quem conheceu este antifascista, de cachimbo sempre no canto da boca e casaco de xadrez, saberá o quanto estas linhas são poucas para espelhar a sua vida, em que à coragem juntou a lealdade e o seu humanismo, que lhe valem o título de "o último herói romântico de Portugal".
Isabel Oneto
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Palma Inácio nasceu em Ferragudo, Lagoa (Algarve), em 1922, mas passou a juventude em Tunes, no concelho de Silves.
Reside, hoje, num Lar em Lisboa.
Fachada da Igreja do Bom Jesus de Goa
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No fundo, a tarefa de não deixar esquecer esta gloriosa aventura que foi a diáspora portuguesa e a "abertura ao mundo" que ela proporcionou, dando início à primeira globalização, é apenas a maneira que tenho de agradecer ter nascido português. É claro que não me orgulho das últimas três décadas e meia, mas elas são apenas uma gota de água no enorme oceano que é a nossa história.
Pedro Dias,
PÚBLICO [2Nov2008],
a propósito da publicação da obra
Arte de Portugal no Mundo